Luíza.

Luíza esperava no hospital. Sua irmã estava internada e Luíza esperava para poder acompanha-la. Deram-lhe um crachá e Luíza dirigiu-se até o elevador para poder encontrar o quarto. O elevador deixou-a no andar errado. Este não era o quinto andar, mas sem direção, Luíza desceu mesmo assim, dirigiu-se ao final do corredor para perceber que errara. Os quartos tinham números começados com 4, por isso não era o quinto andar de maneira alguma. Pensou que não compensaria subir apenas mais um andar pelo elevador, procurou as escadas e subiu os degraus já cansada das decisões que deveria tomar. Luíza tinha hábitos peculiares, uma rotina muito regrada e medo dos seres humanos, uma sócio fobia adquirida já na infância. Luíza tinha quase certeza de ter subido apenas um andar, mas na placa logo acima do hidrante estava marcado 10. Décimo andar? Não se lembrava de ter subido tanto. As luzes naquele andar estavam acobreadas, piscavam intermitentemente e um barulhinho chato escapava de alguma caixa de energia. Os quartos estavam todos fechados e os corredores vazios. Vou descer. Pensou Luíza. Era o mais sensato a fazer.

Resultado de imagem para imagens deep web fortesDesceu alguns degraus até o andar debaixo e o número que viu na placa foi 23. Impossível. Não só porque deveria mostrar o nono andar, já que ela desceu apenas um andar, como também duvidava de que aquele prédio poderia ter mais do que dez andares. Resolveu caminhar pelo corredor do estranho vigésimo terceiro andar procurando por algum enfermeiro de plantão. Cruzou uma antessala e depois dobrou para um corredor a esquerda com mais quartos. E se sondasse algum quarto? De repente encontraria o enfermeiro cuidando de algum paciente. Aleatoriamente escolheu o absurdo quarto de número 233 e abaixou o trinco abrindo a porta. Olhou primeiro para frente observando uma cama vazia e desarrumada, aparelhos zunindo no canto e a luz semi acesa. Escutou que alguém gemia. Gemia de uma dor insuportável e notou que este alguém se arrastava aos seus pés. Olhou para baixo e interrompeu um grito rouco com a palma da mão. Uma mulher idosa vinha em sua direção arrastando-se com o que lhe sobrava das pernas, na verdade duas tripas que ao serem rastejadas pelo chão deixavam um rastro purulento e viscoso, como se tudo abaixo da cintura da idosa tivesse sido mastigado. Ela gemia de dor e pedia ajuda. Seu rosto contorcido era horroroso de se ver e Luíza não pôde fazer outra coisa a não ser acovardar-se e deixar o quarto evitando vomitar no piso claro e resplandecente do hospital.

Imagem relacionadaDescer era agora sua única opção. Ao deixar os degraus notou que estava no absurdo andar 555, com quartos com numerações que beiravam o ridículo: 5553, 5543. Mas no fundo daquele corredor de luzes piscando e de sombrias paredes febris, uma gorda enfermeira estava de costas remexendo em seu carrinho carregado de produtos hospitalares. Luíza acelerou os passos e já enquanto caminhava pediu ajuda contando à enfermeira tudo que passara até aquele instante.

A enfermeira virou-se solícita e até sorriu enquanto regurgitava um sangue aguado e deliberante. Luíza horrorizou-se ao encarar aquele rosto branco e sem vida da enfermeira, cabelos grudados no crânio saindo oleosos e cinzentos por debaixo do chapéu, veias azuladas que serpenteavam por toda a extensão de seu corpo obeso e olhos cinza virados para órbitas diferentes. Não houve como Luíza segurar o grito de horror. Ajoelhou-se exausta e desesperada. Sobre a mesinha, a enfermeira retirava pequenos fetos de vidros de formol e os comia com voracidade, enquanto sorria e mostrava-se pronta a ajudar. Luíza não conteve o choro e muito menos o peso do corpo dolorido. Deitou-se no chão frio do corredor onde a  luz piscava intermitente e ali desabou sobre a água purulenta que gotejava dos vidros de formol.

Na recepção, Geórgia acordara de um cochilo inconstante e uma psicóloga veio ao seu encontro lhe avisando que Luíza, sua irmã,  havia falecido naquele instante enquanto tentavam reanimá-la em um dos quartos da Unidade de Tratamento Intensivo.

***

Diabo Ex-Machina

Mãozinhas rosa que catam conchinhas no mar.
Uma informação tão irrelevante que por algum momento creio estar tendo algum tipo de alucinação ou o que é pior, uma lembrança. Para falar a verdade, eu não deveria nem ao menos estar revelando a um provável leitor esta minha epifania, pois como sei, eu sou um Coletor e Coletores sobrevivem apenas para receber informações, torná-las relevantes e cadastrá-las num sistema gigantesco de servidores, que chamamos inutilmente de “A Grande Cabeça”!

“Tribos indígenas tomam controle neste momento de uma base militar no setor leste do Deserto Amazônico. Depois que as últimas árvores foram derrubadas e que o rio secou, tribos rebeldes oriundas do baixo amazônico lutam para retirar qualquer tipo de estrangeiros do que chamam invasores teutônicos.”

Por um momento esta informação desce pelo conluio mental acoplado ao meu crânio e se espalha por uma rede de computadores onde eu o catalogo co-mo assunto geopolítico e o transmito à Central. Estive acoplado ao sistema por mais de trinta anos, condensando em pequenos bits milhares de informações que passam pela rede e descem até a mim. Já que por este breve momento meu cérebro voltou a se tornar uma massa cognitiva, eu me assusto e me inibo com o que eu posso revelar. De prontidão sinto uma vontade inabalável de sorver nico-tina, não sei por que, talvez de alguma maneira, em tempos idos, eu tenha sido um fumante inveterado.
Espere…

“A Grande Nação do Alasca, que hoje domina toda a região que um dia foi o Canadá e parte dos Estados Unidos da América, diz em nota oficial que está em acordo para a compra do México. Países da América Central que se extinguiram a muitos anos, agora anexados ao continente mexicano, pedem as Nações Unidas que não votem a favor deste decreto para manter a individualidade dos seus cidadãos que ainda fazem sobreviver à língua latina.”

Eu pisco por breves minutos. São piscadelas rápidas. Como se eu estivesse saindo de um transe místico. Fazem trinta anos que eu não mexo as órbitas dos meus olhos, que antes eram também músculos atrofiados, assim como meus braços e minhas pernas. Espere… Há uma mãozinha rosa que segura o vestidinho de chita amarelo, enquanto a outra mão rosa coloca conchinhas em suas dobras. Espere… Não posso processar isso, porque não há qualquer relevância para o Estado. Eu seria desligado, quem sabe até mesmo desmembrado, caso viessem descobrir que estou cadastrando informações irrelevantes, caso venham a descobrir esta minha pequena equação cognitiva. Mas por hora, eu coloco no Banco de Dados alguns itens para que sapiens posteriores venham a servir o Estado de acordo com o códice.
Espere…

“O Grande Mestre, num pronunciamento na Praça de Milão, disse que a Nação do Alasca está pronta para negociar os territórios mexicanos, que são a faixa total que vai desde a antiga Guatemala até o também antigo território do Panamá. Num acordo alicerçado pelas bases do Governo Mundial, as ilhas ao redor também serão anexadas ao acordo Alasca-Governo.”

Por um momento sinto minha boca salivar e como agora tenho esses pensamentos tão cognitivos, imagino que em algum momento o meu cérebro, antes grudado à Rede, agora começa a tomar rumos incertos através do meu corpo atrofiado. Ouso até mesmo rodar as órbitas dos meus olhos a procura de algo a mais e vejo ao meu lado, outro Coletor. Este de olhos grudados no monitor, boca dura e face febril. Não posso me virar como gostaria, mas imagino que ele deva ser uma pessoa inválida ou mesmo um idoso de mais de setenta anos, criaturas que o Estado não acha mais utilizáveis, então, descem para cá, numa sentença de morte absurda. O tampo de nossas cabeças é removido e num processo quase embrionário, nos transformamos num feto adulto, cheio de canoplas, tubos, fios coloridos, engenhocas mecânicas, tripas digitais, sensores de armazenamento bidimensionais, relatores de consciência cibernética e voilà! Nós deixamos de existir como seres humanos inúteis e passamos a ser uma carcaça pertencente à máquina, com um sentido binário amorfo e uma alma digital. Não, não, não… Esqueça a alma, não temos alma, ninguém tem alma, nunca tivemos alma, isso é a parte espiritual da sociedade que deixou de existir em 3045, antes do Códice de Muran nos pregar que tudo que nos tornamos até agora foi fruto de uma imaginação sapiens. Capitalismo foi o fruto de uma imaginação sapiens; democracia foi o fruto de uma imaginação sapiens; cristianismo foi o fruto de uma imaginação sapiens! Não há como negar…
Espere…

“Em Bogotá, milícias alasquianas são apedrejadas em plena Praça Maduro por ativistas que são contra a anexação dos territórios da América Central ao Alasca. Eles estão desde outubro de 3082 defendendo as fronteiras do país contra a descida do Governo Alasquiano para os países do baixo amazônico. Os ativistas de-fendem a liberdade de território, o livre comércio com a Europa e a defesa da língua castelhana.”

“Mãe!” Ouço a menina chamar e todo o conteúdo de conchinhas do seu vestido cai na areia da praia. Ela se lança numa gargalhada contínua ziguezagueando pelas dunas do litoral. Eu posso ouvir sua gargalhada, como isso é possível eu não sei. No oco do meu cérebro, em algum lugar nas entrelinhas de meus neurônios, eu acabei por me desligar da máquina. Como isso pode ser possível?
Espere…

“O Primeiro Ministro Inglês, Sir Thomas Morton II, está agora no Planalto das Acádias, em Hay Brazil, no extremo norte da Cordilheira dos Andes, onde jan-tará com o líder mundial, Dom Muran IV, para falar sobre o acordo feito entre o Alasca e líderes dos territórios centrais, a respeito da compra daquela faixa de terra, inclusive das ilhas que circundam a antiga América Central. O assunto será justamente sobre a importância de se manter o livre comércio entre a Europa e os países do baixo amazônico. Sir Thomas Morton II também levantará a questão do território de Cuba, hoje chamado País-Prisão (ou simplesmente Castro), onde em 3042 foi decretado pelo Códice de Muran, que o antigo país comunista estaria à mercê do Líder Mundial para servir de única Prisão do Globo. A preocupação do Primeiro Ministro é a superpopulação de prisioneiros na ilha e a sua periculosidade para o resto do mundo.”

Quando a menina de vestido de chita amarelo corre em direção à mãe, eu sinto como se meus olhos subissem pelo meu inconsciente fazendo-me olhar para o rosto sorridente e feliz da criança. Ela tinha cabelos cor de areia, um rosto róseo, covinhas nas laterais do sorriso e grandes olhos azeitonados. De alguma forma eu já conhecia aqueles grandes olhos azeitonados. Como se aquela informação já estivesse em meus bancos de dados e eu tivesse suprimido esta informação por orgulho ou medo! Não, não, não! Esqueça o banco de dados, pois o que estamos tendo aqui é um vislumbre. O que eu estou sentindo aqui é que de alguma forma as informações estão se truncando. Que algumas informações es-tão vindo de fora, se conectando ao meu cérebro via Tubo Coletor e que outras informações parecem estar saindo de… Mim mesmo. Sinto o salgado do mar em minha boca. Não! São lágrimas que escorrem de meus olhos que agora piscam, molhando meus lábios onde eu as tomo com a língua. Uma língua áspera. Um músculo antes atrofiado por trinta anos. E se eu mexesse só um pouquinho o pescoço…
Espere…

“Notícias vindas do Planalto das Acádias são de que o Governo de Dom Muran IV acaba de incendiar com duas ogivas nucleares de fator 9, a capital da Colômbia. Duzentas e cinquenta mil pessoas morreram e outras quatrocentas mil foram infectadas pela radiação. Até o momento não temos contato nenhum com líderes do país e nem de outros líderes das outras faixas do baixo amazônico. Estamos sem contato ou transmissão do local, nem via Internet, nem por vias telefônicas ou rádio.”

terraX

No oco que sobrou de meu cérebro, ouço uma gargalhada bela e estridente de criança. Viro devagarzinho o meu pescoço e meu tronco quase se expande numa linha vertical dolorida. Dobro minha testa sobre meus cenhos escurecidos pela resina do ambiente e giro as órbitas dos meus olhos. Assim posso ver o que acontece do meu lado esquerdo e não é nada bom. Há um comprido corredor, lotado de tubos, conectores, placas, sistematizadores, condutos, rótulas digitais, pickups cibernéticas, áureos mecatrônicos, defensores algoritmos e entre os cabos há cadeiras altas aplainadas sobre espaldares de sílex. Nessas cadeiras há centenas de antigos sapiens, todos iguais a mim, todos sentados em posição tu-bular, ligados incondicionalmente a todo tipo de parasitas cibernéticos, que lhe atrofiavam desde o crânio aos membros mais ínfimos do corpo. Estavam ali idosos com mais de setenta anos e outros considerados inválidos e fora dos padrões de uma sociedade sem erros genéticos. Eu não era idoso, por isso, imaginava ter sido quem sabe um tetraplégico ou um sapiens com alguma doença degenerativa rara. O que importava era o cérebro! Ligado à máquina, ele seria apenas um elo entre o pensar arquitetado e o absorver de informações. As informações vinham lá de fora, de outros como nós que as recolhiam e nos transmitia. Com cérebros mais privilegiados tínhamos a função derradeira de processar estas informações, condensá-las, catalogá-las e cadastrá-las mandando-as para o banco de dados central de acordo com suas mais inerentes especificações. Trabalho árduo? Que nada. Apenas queima e mais queima de neurônios e assim o cérebro ficava predisposto a apenas escutar a voz do computador. Aos poucos sua alma era a-pagada. Sua essência desnivelada e você virava um simples Coletor.
Por conseguinte, eu vislumbrei uns olhos azeitonados e estes olhos, juntos com a cor quase serena dos cabelos de uma criança, fez-me despertar para uma vida que por um obséquio do destino, me pareceu não mais possuir. Então rolou uma lágrima esquiva e esta me fez sentir um sabor de corpo que vibra. Voltei meu pescoço para frente e as pontas dos meus dedos começaram a formigar, para depois cessar e eu conseguir levantá-los. Era a parte que me faltava. Dobrar e subir meus braços. Isso era tudo do que eu precisava. Nada mais que isso. Eu sabia que a qualquer momento, minhas condições cognitivas chegariam ao sistema central e que me descobririam como uma criatura dormente que acabara de acordar. Viriam até aqui e eu seria eliminado. Como? Fácil. Destrave o conduto que se conecta ao meu córtex e pronto, minha massa encefálica morre!
Espere…

Não, não, não! Não posso esperar mais! Deixo que a informação de que o Governo Mundial vai intensificar mais ainda a segurança no Planeta criando mais cinco países prisões no baixo amazônico escorra para qualquer cloaca sistemática de Muran IV. Então escuto a menina gritar dentro do meu consciente: “Pai!” E como num carrossel de cavalinhos que agora sobe tudo vem à tona. Recebo um nome: Caroline. Que me lembra de caramelo. Cor de areia. Meus olhos azeitona-dos como os dela. Minha filha Caroline. Eu não tive só uma epifania, eu tive de-pois de trinta anos uma lembrança. Tão exata. Tão linda!
Faço esta minha lembrança descer pelo meu conluio mental e atacar os outros computadores como um vírus. As centenas de cascas vazias que estão em-parelhadas comigo no corredor recebem uma alta carga de minhas lembranças.
A criança, o vestido de chita amarelo, sorriso, covinhas, cabelos que ondulam, pés descalços, areia entre os dedos, cheiro de maresia, som ululante de mar, ar-dor pegajoso de suor, sal que tempera carne humana, sol que abrasa a pele. Sinto que eles também choram. Juntos nós levantamos os braços, antes tão atrofia-dos, até alcançar a cabeça e retiramos nossas coroas cheias de condutos. Sinto que iremos parar. Talvez morrer. Mas por alguns longos meses o verdadeiro Sistema também irá parar, também irá morrer e um novo deverá ser reiniciado. Meu último suspiro morre num sorriso artesanal.
Caroline, aqui vai um beijo do papai. •

Meu novo livro fala de espelhos e fantasmas – Reflexo Oculto

Quando um homem compra um espelho ele traz para si a natureza de seu próprio reflexo, um reflexo oculto, indecifrável, que ele não conseguirá definir onde começa o real e o espéculo. Manoel de Isaías é um homem rico e solitário, cercado por empregados que o bajulam e preso numa vida de muitos regalos e poucas alegrias. Mas tudo pode mudar quando com a morte da irmã ele passa a conviver com o seu misterioso sobrinho Ovídio e também com os mistérios ocultos num estranho e recém adquirido espelho. Será que o que está na prata deste espelho é realmente um reflexo ou o mundo aqui fora, que se tornou tão abstrato, se mostra a verdadeira face do contrário. Um livro instigante, sobrenatural, indecifrável.

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